Luminol Quotes

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Luminol Luminol by Carla Piazzi
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“Otto faz isso comigo. Coisas tão corriqueiras como vê-lo sem óculos fitando o armário, ou sua ligação com Ernesto e a fábula do tambor, ou, hoje, ele lá em cima do telhado, provocam em mim uma estranheza como se, ao focar um fragmento, eu pudesse acessar outra totalidade. E aí a familiaridade com ele se desfaz. É o oposto do que acontece com as outras pessoas daqui: no nosso trato cotidiano, quando acesso uma faceta que ainda não conhecia de alguém, sinto que isso aprofunda a intimidade, algo se acrescenta, mas no caso de Otto é subtração, e ele reaparece como um desconhecido.

Ele percebeu que eu o olhava. A gente sabe, até de costas, quando tem alguém nos observando, e os meus desvios rápidos do olhar, esse reflexo que só piora tudo, devem ter reforçado a sua percepção de que, sim, eu media cada gesto seu, cada expressão. O que será que ele deve ter imaginado? O que pensar quando uma pessoa que mora com você (e não só mora, mas também trabalha, estuda, festeja, discute, conhece o som dos seus passos, dos espirros, do bater da porta, divide o banheiro, o cuidado com a criança, com as heranças) começa, do nada, a te olhar descaradamente?”
Carla Piazzi, Luminol
“Toda tentativa de pulverização do eu que sofre só me deixa mais ciente de sua solidez. Nunca estive tão consciente da utopia que é viver no presente (que, pra mim, só existe assombrado pelo passado e pelo futuro, que sempre estiveram aqui e agora, mas raramente notados). Essa consciência é a parte maravilhosa de meditar e, por enquanto, é só isso.

Como questionar a realidade da assombração, algo que vem do passado e acossa o presente querendo dizer algo sobre o futuro, quando seus contornos se tornam cada vez mais nítidos? Como não prestar atenção a uma situação na qual não resta dúvida de que me tornei um fantasma pra minha filha e ela se tornou um fantasma pra mim? É como se eu tivesse uma rede de pesca em minhas mãos e não conseguisse fazer nada com ela, porque fui hipnotizada por seus buracos.”
Carla Piazzi, Luminol
“Não consigo pensar agora em nenhum guarda-roupa mais entulhado que o da intuição. Qualquer tentativa de vislumbrar a nudez dessa percepção misteriosíssima, que dizem ser a ponte entre o humano e o divino, culmina numa indumentária. Cresci olhando pra essa ponte vestida de anjo da guarda. Posso ler o que for, buscar outras estéticas, outros símbolos, expurgar superstições, matar Deus e desencantar o mundo, que a imagem e o toque do anjo não se desfazem.”
Carla Piazzi, Luminol
“Mas se decidi soltar um tanto de minha história, e se em torno dela voassem outras, por que eu haveria de querê-la aprisionada em um relicário? Há de se preparar pra nudez pública? Pro escrutínio da intimidade? Não, não existe preparo, isso é uma escolha. Ninguém encostou em mim, eu mesma arranquei minhas roupas. No fim das contas, a única coisa que ficou comigo e que me faz continuar é o desespero; é ir até minha escrivaninha a cada manhã com a convicção de que não me resta nada, é a renovação diária da contradição: entrar, de bom grado, num beco sem saída.”
Carla Piazzi, Luminol
“Pra mim, pelo menos, o desespero é de quem escreve, e não de quem lê. Eu posso até encontrá-lo (e encontro) em meus livros de cabeceira, mas nunca li motivada pela desesperança. Que façam suas leituras, isso não é comigo.”
Carla Piazzi, Luminol
“Quando larguei a endemoniada, ela tremelicou os braços, botou aquele olho em mim e desandou a falar e foi bem assim: ‘Ajeitei um buraco grande naquela cabeça que não prestava, pra ver se entrava o que aquela infeliz não entendia: a fome do meu filho. Vai começar a chover, homem de Deus, toma seu rumo e volta logo, que meu menino tem fome.”
Carla Piazzi, Luminol